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quarta-feira, 29 de março de 2006

O Chiado segundo Paulo Coelho

Passava pelo Celeiro e comprava uma lata de cerveja belga de boa qualidade. Subia a Rua do Carmo e no Chiado alternava em cada dia entre uma das três igrejas da Rua Garrett. Escolhia um lugar no recato da penumbra dos bancos corridos e bebia deleitado, em pequenos sorvos para que durasse, saboreando profundamente o sabor achocolatado da bebida. Este prazer divinal era um segredo que não comungava com mortais. Este gosto íntimo de fim da tarde restituía-lhe a vontade de continuar em direcção a nada. O anfitrião com quem entabulava depois longos diálogos, sem tempo e sem assunto definidos, era de uma disponibilidade infinita. Nunca se sentia compelido a terminar uma conversa nem se atropelavam na ordem das falas. Isso ou o temor reverencial eram motivo para ficar por tempo irrazoável. Com Ele que o recebia sempre com o mesmo silêncio acolhedor sentia-se seguro e revigorado. O persistente sabor a chocolate que o acompanhava até casa era o lado terreno destes encontros que antecipavam a noite. Momentos inefáveis.
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sexta-feira, 17 de março de 2006

Os amigos e as ocasiões

Era bom tipo. Tinha chegado da tropa com o sétimo ano (hoje o décimo segundo), fora oficial em Moçambique e fez a guerra a sério. As peripécias da guerra que contava com detalhes arrepiantes juntavam à mesa do café Paraíso a estudantada que por ali passeava as sebentas dos finais dos anos sessenta. O Macedo nos intervalos das desditas da Frelimo ia pedindo que lhe dissessem o que era uma derivada, aos craques da Matemática; que lhe explicassem essa coisa do estado de necessidade, aos tipos de Direito; e a teoria do Keynes por miúdos, aos aspirantes a economistas. E safava-se. Deixei-o estava ele entre o primeiro e o segundo ano de Economia, quando assentei praça em setenta e um.
Quatro anos mais tarde lá voltei eu ao Quelhas para completar o curso que a tropa me cortara a meio. A primeira cadeira que me tocou em sorte foi a de cálculo financeiro. Propus-me a exame, prerrogativa dos ex-militares que, mais inteligentes que os outros, não precisavam de frequentar aulas. Na prova escrita terei tido uma nota que me obrigava a uma prova oral: mais de catorze.
E a surpresa aconteceu. Quando, para o exame oral, entro na sala, ainda magistral, com a mesa do examinador quase a dois metros do chão e fixo o dito, era o Macedo. O mesmo, o das estórias da Frelimo do café Paraíso, feito professor universitário. “Estou safo”, pensei. Pensei mal, o exame foi duro e tenso, com o Macedo muito empertigado a perguntar de rendas e de anuidades. E eu sem falhas. Brilhante. Mesmo para mim que sou o maior crítico de mim mesmo. No final a nota: catorze.
“Não podia dar-te mais, todos sabem que somos amigos”, dizia o bom do Macedo no final da prova. Deixei de lhe falar. Até hoje.


domingo, 12 de março de 2006

Os Domingos de Ramos

Como eu te compreendo, Mário.
Fizeste muitos dos que agora aí estão. Trouxeste de volta os que paravam por Madrid, Paris, Brasil. Deste rédea solta a um povo que elege Gondomares e quejandos. Encheste alamedas e houve grandes marinhas. E a paga é nada.
Não te zangues, isso é a (nossa) vida. Lembra-te que quando nos dói um dente damos tudo o que o tipo da bata branca (agora verde, não sei bem se para durar mais sem ser lavada) nos pede. Passada a dor, concluímos que ele foi um gatuno, nos levou por quinze minutos de normal desempenho o pecúlio de um mês. Esquece-se o fundamental fica o que é pequeno, o material, os trocos.
Compreendo-te bem: um erro não deveria apagar o que de bom (ou menos mau) se fez numa vida. Mas apaga. O ser humano é cruel. A seguir a um domingo de ramos é capaz de uma crucificação. Há 2006 anos que é assim.
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segunda-feira, 6 de março de 2006

Ternura dos 40

Aos jovens de hoje faltam causas por que lutar. A geração que está hoje nos 40 pode orgulhar-se da colheita ou antes criou monstros, que cresceram num mundo de abundância consumista, com vastos direitos e nenhuns deveres? Vou por aqui. Ouvia na fila da caixa dum supermercado uma mãe quarentona para uma amiga: “Chegou às 8 da manhã a casa com a namorada e disse-me: viemos aqui tomar o pequeno almoço. Não achas uma ternura?”. Ternura!

Isso seria o menos, não fosse numa universidade onde trabalho um dirigente associativo que vai no nono ano de matricula, num curso de 4, argumentar que os órgãos de gestão precisavam de ser demitidos porque já não havia ali lutas estudantis há um ror de tempo. Que causa ternurenta!


quarta-feira, 1 de março de 2006

1972

Retome-se Abrantes em 1972: Uma cidade de província com os ingredientes característicos da modorra de então: um café central, um hotel de Turismo, um cine-clube, um colégio para os mais abastados e uma escola comercial e industrial para o resto. Ah! e o Quartel, o RI 2. Fábrica a fazer soldados para as guerras nas colónias, 24 horas por dia, 7 dias por semana, gerida maioritariamente por graduados milicianos. A soldadesca, motor do magro negócio da zona, passava a noite calcorreando as ruas da cidade até recolher, o que era um verdadeiro quebra cabeças para as mães das filhas adolescentes que ansiavam sair dali mesmo que o destino fosse a Guiné, Angola ou Moçambique. Os graduados milicianos faziam do Pelicano, o café mais “in” da cidade, o seu quartel general porque o Pelicano era o epicentro de todos os acontecimentos, a passarela de todas as modas, e o sítio das conversas de futicas e das tertúlias burguesas. Para os militares mais afortunados o bar do Hotel (h grande é para lhe dar mais estatuto) era o poiso alternativo. No Hotel, uns gins intragáveis arredondavam os cantos da boca e até os noticiários chegavam para gargalhar. Eram tempos fugazes porque chegava rapidamente o dia do embarque em que, garbosos (toma lá!), os batalhões marchavam para África, com o medo por companhia, por Companhia. E Abrantes lá ficava, indiferente, na pacatez do dia a dia, a fazer o que sabia fazer melhor: fabricar batalhões.


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